Durante o século XVI, Pernambuco se destacou como uma das capitanias hereditárias mais prósperas do Brasil colonial. Neste cenário, um grupo social ganhou relevância por sua contribuição econômica e cultural, embora muitas vezes silenciado pela historiografia tradicional: os cristãos-novos.
Os cristãos-novos eram descendentes de judeus convertidos ao cristianismo à força durante a Inquisição ibérica. Muitos buscaram refúgio no Novo Mundo, fugindo da perseguição e tentando reconstruir suas vidas.
Em Pernambuco, sua atuação foi marcante, especialmente nas áreas de comércio, agricultura e administração. Este artigo analisa o papel dos cristãos-novos em Pernambuco no século XVI, utilizando evidências históricas e explorando o contexto social, religioso e econômico em que estavam inseridos.
Quem eram os cristãos-novos?
Com a intensificação da Inquisição em Portugal a partir de 1536, milhares de judeus sefarditas foram obrigados a se converter ao cristianismo. Esses convertidos, conhecidos como cristãos-novos, muitas vezes continuavam praticando secretamente o judaísmo, sendo chamados de criptojudeus.
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No Brasil, especialmente em Pernambuco, os cristãos-novos encontraram uma oportunidade de escapar da vigilância severa da Igreja e buscar liberdade econômica. Muitos deles eram comerciantes, banqueiros, médicos e administradores experientes, o que lhes deu vantagem nas colônias recém-estabelecidas.
A importância de Pernambuco no século XVI
Pernambuco foi uma das poucas capitanias hereditárias que prosperou no século XVI. Seu sucesso deveu-se, em grande parte, à cultura da cana-de-açúcar, que exigia grandes investimentos, mão de obra escravizada e um sistema complexo de comércio.
Nesse contexto, os cristãos-novos tiveram papel essencial, atuando:
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No financiamento dos engenhos, com investimentos diretos ou por meio de empréstimos;
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No comércio de açúcar, tanto interno quanto com mercados europeus;
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Na importação de escravizados africanos, participando da rede do tráfico negreiro;
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Na intermediação comercial entre produtores locais e mercadores portugueses.
Cristãos-novos no Recife e em Olinda
Duas cidades se destacam como centros de atuação dos cristãos-novos: Olinda, capital da capitania, e Recife, que mais tarde se tornaria um polo comercial estratégico.
Muitos dos principais comerciantes do Recife no final do século XVI e início do século XVII eram cristãos-novos. Famílias como os Duarte, Rodrigues e Nunes controlavam parte significativa do comércio açucareiro. Embora frequentemente vítimas de preconceito, sua competência os tornava indispensáveis ao funcionamento da economia local.
Documentos históricos apontam que entre 1590 e 1610, mais da metade dos comerciantes mais ativos da região de Recife eram cristãos-novos.
A perseguição religiosa e a ação do Santo Ofício
Apesar de sua importância econômica, os cristãos-novos eram alvos constantes da desconfiança das autoridades eclesiásticas. A Inquisição Portuguesa, embora sem um tribunal oficial no Brasil no século XVI, mantinha visitadores e recebia denúncias de práticas judaizantes.
Em 1591, o padre jesuíta Fernão Cardim escreveu que havia muitos cristãos-novos no Brasil e que “alguns guardavam as cerimônias judaicas”. Esse tipo de denúncia abriu caminho para visitas inquisitoriais no século XVII.
A perseguição atingia principalmente os que se destacavam socialmente, gerando um ambiente de medo e silêncio, onde muitos passaram a disfarçar completamente suas origens e tradições. Mesmo assim, havia registros de práticas criptojudaicas em segredo, como o acendimento de velas no sábado (shabat), o uso de orações hebraicas e dietas diferenciadas.
Um caso emblemático: Gaspar Dias Fernandes
Gaspar Dias Fernandes foi um dos cristãos-novos mais influentes de Pernambuco no século XVI. Comerciante de destaque, acumulou grande riqueza e influência em Recife. Documentos apontam que ele ajudou a financiar engenhos e possuía contatos comerciais com Lisboa e Amsterdã.
Apesar disso, sua ascendência judaica fez com que fosse denunciado por práticas judaizantes. Sua trajetória mostra como os cristãos-novos viviam entre o sucesso e a constante ameaça da perseguição religiosa.
A contribuição cultural e social dos cristãos-novos
Além da esfera econômica, os cristãos-novos contribuíram para a formação da sociedade pernambucana de maneira mais ampla:
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Trouxeram saberes técnicos, como conhecimentos de contabilidade, medicina e administração;
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Introduziram hábitos alimentares e culinários que mesclavam tradições ibéricas e sefarditas;
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Promoveram o intercâmbio cultural com comunidades judaicas europeias, especialmente após a ocupação holandesa em Pernambuco (1630-1654), quando muitos puderam viver sua fé mais abertamente por um período.
Conclusão
O papel dos cristãos-novos em Pernambuco no século XVI é frequentemente negligenciado na narrativa histórica tradicional. No entanto, sua presença foi fundamental para o desenvolvimento econômico da capitania, especialmente no comércio do açúcar, no financiamento de empreendimentos e na circulação de bens e pessoas.
Mesmo sob o peso da desconfiança e da perseguição, os cristãos-novos deixaram uma marca indelével na sociedade colonial. Estudar sua trajetória é não apenas resgatar uma parte esquecida da nossa história, mas também refletir sobre a intolerância religiosa e a resiliência de identidades silenciadas.
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